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Quando o alto salário não basta: a realidade financeira de viver na Irlanda

20 de Setembro de 2025
Fabio Batista

Viver na Irlanda hoje pode parecer um sonho para muitos: bons salários, oportunidades de emprego, um padrão de vida aparentemente elevado. Porém, quando se olha mais de perto para as contas no fim do mês, para os custos fixos, para o valor real do salário líquido, é fácil perceber que o cenário não é tão simples quanto parece.

1. O salário elevado ? e suas limitações

Os números mostram: sim, a Irlanda está entre os países com maiores salários médios da Europa Ocidental. Isso é fato, e não é pouca coisa. Mas é preciso entender qual salário estamos falando, e quais custos o acompanham. Salário bruto versus salário líquido, tempo de transporte, aluguel, alimentação, energia ? tudo isso corrói o que achamos que é "bom ganho".

2. As despesas não param de subir

A inflação nos últimos anos atingiu muitos setores essenciais: energia, alimentos, transporte. Ajustes pontuais ou subsídios ajudam, mas não acompanham substancialmente o ritmo em que os custos básicos sobem. Uma pesquisa recente indica que os custos de energia subiram ~23%, de alimentação ~21% na última época considerada, impacto direto no orçamento familiar. Social Justice Ireland

Além disso, o Living Wage (salário para uma vida digna) foi ajustado para ~?14.80/h para 2023/24, refletindo que muitos com salário mínimo ou pouco acima estão abaixo do que é necessário para cobrir mínimas despesas essenciais. Social Justice Ireland

3. Moradia: o grande peso

Aqui está o nó mais visível. A moradia ? seja aluguel ou hipoteca ? está com preços altíssimos, especialmente em Dublin, mas também em Cork, Galway e arredores. A oferta não cresceu no mesmo ritmo da demanda: há anos há subinvestimento no setor, construção insuficiente, atrasos regulatórios, custos de terrenos e construção altos. Central Bank of Ireland+2Economy and Finance+2

Enquanto isso, os aluguéis têm crescido em taxas muito superiores às dos salários. Por exemplo, entre 2012?2022, salários subiram ~27%, enquanto os aluguéis cresceram ~90% no mesmo período. The Guardian Isso significa que uma parte muito maior do rendimento mensal acaba comprometida só para garantir teto e paredes.

Comprar casa também virou missão quase impossível para muitas famílias ou jovens: preços de imóveis totalmente fora do alcance de quem não tenha herança, poupança muito grande, ou rendimentos bem acima da média. Economy and Finance+1

4. O "alto salário" vs o que sobra de fato

A armadilha da comparação: ver "salários altos" sem contextualizar com despesas fixas. Um trabalhador pode ter bom salário bruto, mas imposto, PRSI, custos com deslocamento, alimentação, educação, cuidados infantis, saúde, tudo isso reduz drasticamente o que realmente sobra.

Além disso, para quem vive em áreas fora dos centros ou longe de transporte público eficaz, custos extras de deslocamento pesam. E para famílias com crianças, os custos de creche, escola ou extras somam.

5. Percepção enganosa

Para quem visita, para quem só lê "salário médio" ou "PIB per capita alto", fica a impressão de que morar na Irlanda é confortável para a maioria. E para muitos setores, de fato pode ser. Mas para quem está nos escalões abaixo, para quem é recém?chegado, para quem trabalha em setores menos qualificados, para famílias, para quem mora longe ? a realidade é dura.

Essa lacuna entre percepção e realidade pode gerar frustração, expectativa frustrada, sentimento de injustiça. Também pode levar muitos a pensarem: "Será que vale a pena ficar aqui ou buscar oportunidades fora?"

6. Consequências

Atraso nos planos de vida: comprar casa, sair da casa dos pais, estabilidade financeira, ter filhos.

Emigração: jovens qualificados, trabalhadores que veem melhores condições em outros países, onde o custo de vida, proporcionalmente, é menos punitivo. Há evidências de que "o custo de vida está empurrando pessoas para fora da Irlanda". maynoothuniversity.ie

Desigualdade crescente: quem tem renda alta ou ativo financeiro, terreno ou herança, ou bom salário ficam bem, mas quem não tem ? especialmente quem depende só de salário ? sofre muito mais.

Pressão social e de saúde mental: insegurança financeira, dificuldade para emergências, menos poupança, menos lazer, menos segurança no futuro.

7. Caminhos possíveis

Para equilibrar essa balança, não bastam elogios ao salário médio. São necessárias políticas, ajustes, escolhas coletivas. Alguns caminhos:

Aumentar oferta de habitação acessível, com foco em custos realistas de aluguel e construção.

Incentivar regulações ou esquemas de subsídios para aluguel ou compra para quem realmente precisa.

Ajustar o living wage periodicamente para acompanhar inflação real, particularmente em itens essenciais.

Políticas de transporte, energia, educação e saúde mais eficientes e com custos controlados para as famílias.

Transparência nos custos de vida, orientação para quem chega (imigrantes, estudantes) entender antes de decidir.

Revisão de impostos ou incentivos fiscais que ajudem os rendimentos líquidos para famílias médias e baixas.

É sedutor olhar só para os números "positivos": salários médios altos, uma economia forte, bons empregos. Mas viver no dia a dia ? pagar aluguel, comprar mantimentos, pagar contas, cuidar dos filhos ? exige mais do que um bom salário: exige que esse salário vá relativamente longe. O que vemos na Irlanda é que, para muitos, não vai.

Reconhecer essa lacuna ? entre o que parece e o que é ? é o primeiro passo. O segundo é agir, tanto por parte de quem governa e formula políticas, quanto de quem vive aqui, de quem vota, escolhe onde morar, trabalha onde e como. Porque só assim "alto salário" deixará de ser apenas um título bom para manchetes, e se tornará parte de uma vida financeira sólida, estável e digna para a maioria.

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